16/02/2011

roberto damatta e o futebol


vou usar esse espacinho aqui também para compartilhar com vocês coisas que gosto de ler e que influenciam o meu olhar sobre o futebol, certo? vocês conhecem roberto damatta? provavelmente, né? pra quem não conhece, é um grande antropólogo carioca, nascido em 1936, que se dedica aos estudos do brasil e suas manifestações culturais de uma maneira muito especial. 


não compartilho de suas visões políticas, mas o que me chama a atenção em seu trabalho é a importância dispensada aos estudos de temas considerados 'não sérios' no brasil. antes dele, acadêmicos tratavam o futebol, dentre outras 'desimportâncias' (carnaval, por exemplo), com desprezo e simplismo, respaldados pela ótica marxista (old) que tachava o esporte de 'ópio do povo', ou apenas mais um instrumento de alienação (ai, meu saco imaginário)


damatta foi pioneiro em uma nova maneira de pensar o futebol, enxergando-o como um atalho para descobertas profundas sobre quem somos, como uma projeção de valores essenciais para o significado do ser brasileiro. abaixo, ele fala do papel simbólico e transformador do futebol no país. e é brilhante. esse texto pode ser encontrado em uma das paredes do museu do futebol (que site ruim é esse, gente) – como não poderia deixar de ser.


bem prum setentão, hein.
"o amor ao futebol como disputa apaixonada faz com que se perca de vista o seu papel transformador. mas o fato é que o futebol tem sido uma ponte efetiva (e afetiva) entre a elite que foi buscá-lo no maior império colonial do planeta, a civilizadíssima inglaterra, e o povo de um brasil que, naqueles mil oitocentos e tanto, era constituído de ex-escravos. juntar brancos e negros, elite senhorial e povo humilde foi sua primeira lição. o futebol demonstrou que o desempenho é superior ao nome da família e a cor da pele. ele foi o primeiro instrumento de comunicação verdadeiramente universal e moderno entre todos os segmentos da sociedade brasileira. ele tem ensinado a agregar e desagregar o brasil por meio de múltiplas escolhas e cidadanias. 


a segunda lição veio com seu desenho. ele exprime valores antigos (a idéia de que há sorte em todos os confrontos), mas é dele também o ideal moderno de treino. como uma atividade aberta, ele não discrimina tipos físicos e classes sociais. o sujeito pode ser preto ou amarelo, alto ou baixo, culto ou ignorante, mas o que interessa é que saiba jogar. mais: seu foco não são as nobres mãos que levam para o céu (como acontece no vôlei ou no basquete), mas os humildes pés que nos atrelam ao chão e a terra. no futebol, o pé que carrega o nosso corpo transforma-se num mágico instrumento capaz de enganar o adversário e de controlar e passar a bola. como a capoeira, o jogo do ‘pé na bola’ trouxe a multidões de brasileiros a possibilidade de, ao menos simbolicamente, inverter o jogo. no brasil, ele abriu a possibilidade de trocar as mãos pelos pés. 


o pé, associado à pata e à brutalidade das bestas de carga, muda de posição no futebol. nele usa-se o pé, sim, mas com método. seguindo um regulamento que torna as chuteiras de todos os tamanhos e feitios, iguais. e aí está sua lição mais importante: o futebol civiliza o pé. ele mostra que a parte mais atrasada e bárbara do corpo pode ser submetida não só às sutilezas do jogo, mas à civilidade do saber ganhar e perder sem ódio, de modo transparente e por esforço próprio. sem a ‘mãozinha’ dos amigos ou parentes. foi num campo de futebol, não num parlamento, que o povo brasileiro teve a prova de como é maravilhoso juntar treino com talento; ordem com imprevisibilidade; jogadas espetaculares com uma estrutura fixa; e, finalmente, o vitorioso com o derrotado. no futebol, como na democracia igualitária, o ganhador não pode existir sem o perdedor, que terá o triunfo amanhã, mas que hoje, na derrota, valoriza e legitima a nossa vitória".

Nenhum comentário:

Postar um comentário